Por ocasião de recente decisão do Supremo Tribunal Federal, muito divulgada pela imprensa especializada, relativa ao posicionamento funcional dos servidores oriundos de vínculo celetista, cujo ingresso seja anterior à Constituição Federal de 1988, o Escritório Torreão Braz elaborou o presente INFORME JURÍDICO.
Em sessão plenária virtual de 28 de março de 2022, no julgamento do Agravo em Recurso Extraordinário (ARE) n. 1.306.505/AC, em regime de Repercussão Geral (Tema n. 1.157), o Supremo Tribunal Federal fixou a seguinte tese:
É vedado o reenquadramento, em novo Plano de Cargos, Carreiras e Remuneração, de servidor admitido sem concurso público antes da promulgação da Constituição Federal de 1988, mesmo que beneficiado pela estabilidade excepcional do artigo 19 do ADCT, haja vista que esta regra transitória não prevê o direito à efetividade, nos termos do artigo 37, II, da Constituição Federal e decisão proferida na ADI 3609 (Rel. Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, DJe. 30/10/2014).
O presente Informe Jurídico visa a esclarecer os principais aspectos jurídicos que envolvem a questão e os eventuais impactos sobre a vida funcional dos respectivos servidores.
Inicialmente, cabe registrar a discordância com o entendimento firmado, que, em última análise, autoriza uma situação de “desequiparação interna” entre servidores [igualmente] estatutários.
Assim, com fundamento no princípio da isonomia, é inadmissível que, para idênticas funções públicas para servidores igualmente estatutários, existam tanto pessoas investidas regularmente em Plano de Cargos, Carreiras ou Remuneração quanto outras sem posicionamento funcional específico, o que autorizaria um injusto, desigualitário e inconstitucional “limbo jurídico”.
As teses defendidas pelo Escritório Torreão Braz Advogados na defesa de todos os servidores públicos sempre militam em prol da isonomia, que constitui garantia constitucional e cláusula pétrea fundamentais.
Feitos esses esclarecimentos, e tendo como pressuposto a recente decisão do STF, abordam-se os aspectos jurídicos relevantes à vida funcional dos servidores oriundos de vínculo celetista, cujo ingresso seja anterior à Constituição Federal.
Na verdade, o tema de repercussão geral não inova em relação à jurisprudência histórica do Supremo Tribunal Federal. A própria tese remete expressamente ao entendimento firmado na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) n. 3.609/AC, julgada em 5 de fevereiro de 2014 (DJe 30.10.2014).
Tanto no ARE n. 1.306.505/AC (Tema n. 1.157) quanto na ADI n. 3.609/AC, o Supremo Tribunal Federal trata de interpretar restritivamente o caput do art. 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que prevê a denominada “estabilidade excepcional” dos servidores não admitidos conforme a regra constitucional do concurso público (art. 37), sob a égide do regime jurídico anterior à Constituição Federal de 1988. Para o conhecimento literal da norma interpretada pelo STF, cite-se o dispositivo:
Art. 19. Os servidores públicos civis da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, da administração direta, autárquica e das fundações públicas, em exercício na data da promulgação da Constituição, há pelo menos cinco anos continuados, e que não tenham sido admitidos na forma regulada no art. 37, da Constituição, são considerados estáveis no serviço público. [grifos aditados]
O entendimento firmado pelo STF na sessão de 28 de março de 2022 não diverge daquele emprestado já em 2014, amparado em diversos “precedentes” anteriores, quando, em sede de controle concentrado de constitucionalidade, afirmara que “a investidura em cargo ou emprego públicos depende da prévia aprovação em concurso público, sendo inextensível a exceção prevista no art. 19 do ADCT”; a propósito, confira-se a ementa da ADI n. 3.609/AC:
Ação direta de inconstitucionalidade. EC nº 38/2005 do Estado do Acre. Efetivação de servidores públicos providos sem concurso público até 31 de dezembro de 1994. Violação do art. 37, II, CF. Precedentes.
- Por força do art. 37, inciso II, da CF, a investidura em cargo ou emprego públicos depende da prévia aprovação em concurso público, sendo inextensível a exceção prevista no art. 19 do ADCT. Precedentes: ADI nº 498, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 9/8/96; ADI nº 208, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 19/12/02; ADI nº 100, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 1/10/04; ADI nº 88, Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 8/9/2000; ADI nº 1.350/RO, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 1/12/06; ADI nº 289, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ de 16/3/07, entre outros.
- Modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, nos termos do art. 27 da Lei nº 9.868/99, para se darem efeitos prospectivos à decisão, de modo que somente produza seus efeitos a partir de doze meses, contados da data da publicação da ata do julgamento, tempo hábil para a realização de concurso público, a nomeação e a posse de novos servidores, evitando-se, assim, prejuízo à prestação de serviços públicos essenciais à população. 3. Ação direta de inconstitucionalidade julgada procedente.
[STF, Pleno, ADI n. 3.609/AC, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 5.2.2014, DJe 30.10.2014]
A decisão de 28 de março de 2022, portanto, não constitui nenhuma guinada de entendimento do Supremo Tribunal Federal acerca do tema. Observe-se, inclusive, que a decisão foi unânime.
Na verdade, a necessidade de o STF reafirmar a sua jurisprudência por intermédio do denominado regime de repercussão geral decorre de razões processuais.
A questão de fundo (regime jurídico de servidores admitidos antes da Constituição Federal sem concurso público) está repetida em outros processos ainda em curso, não obstante o largo transcurso de tempo desde a origem da controvérsia. Nessas circunstâncias, quando o julgamento nas denominadas instâncias “ordinárias” for contrário à interpretação firmada pelo STF, a decisão pode ser revista pelos próprios tribunais locais ou regionais; ou, sendo as decisões locais consonantes com o entendimento do STF, os denominados “recursos extraordinários” podem ser obstados já na origem.
Em outras palavras, o mecanismo da repercussão geral tem um viés operacional de viabilizar a uniformização da jurisprudência nacional, para que, na medida do possível, as decisões dos tribunais locais e regionais não destoem das decisões do Supremo Tribunal Federal.
Portanto, o julgamento em repercussão geral de 28 de março de 2022 pode eventualmente impactar a vida funcional dos servidores, oriundos de vínculo celetista com ingresso anterior à Constituição Federal, com processos ainda em andamento, nos quais se discutam os limites da interpretação do supracitado art. 19 do ADCT para definir a manutenção ou não do enquadramento em Plano de Cargos, Carreiras e Remuneração.
Não significa afirmar, porém, que todos os recursos do Poder Público contra decisões locais ou regionais favoráveis aos servidores deverão ser revistos ou modificados. Em inúmeros casos, os fundamentos das decisões que garantem o ingresso ou a manutenção em Plano de Cargos, Carreiras e Remuneração são diversos e muito mais amplos, o que garante a aplicação da denominada técnica de “distinção de casos” (“distinguishing”).
Logo, os servidores abrangidos pela situação em tela que ainda tenham processos pendentes não precisam se preocupar com a recente decisão do STF, que, repita-se, é de reafirmação da jurisprudência histórica.
Inclusive, considerando que a jurisprudência reafirmada remonta a julgados firmados há mais de 20 (vinte), em grande parte dos casos concretos (como nos processos acompanhados pelo Escritório Torreão Braz Advogados), as decisões locais ou regionais que garantem o enquadramento em Plano de Cargos, Carreiras e Remuneração já enfrentaram a questão relativa à interpretação restritiva do art. 19 do ADCT.
E, sendo diversos [e mais robustos] os fundamentos jurídicos que garantem o direito dos servidores com processos ainda em curso, a referida técnica de “distinguishing” constitui expediente hábil para afastar eventual intenção de o Poder Público, em recurso dirigido ao STF, obter a futura modificação do entendimento.
Já os servidores com situação jurídica consolidada (v.g., servidores amparados por coisa julgada em ações coletivas ou individuais procedentes, servidores cujo enquadramento administrativo nunca fora questionado judicialmente etc.), que não esteja atrelada a processo pendente (“sub judice”), inexistem, com maior razão, motivos para sobressaltos, como, por exemplo, imaginar-se que a decisão do STF poderia “desenquadrar” servidores de Planos de Carreira, autorizar “novas” ações (já prescritas) para situação consolidadas há mais de 30 (trinta) anos etc.
Em síntese, os efeitos do julgamento de 28 de março de 2022, em regime de Repercussão Geral (Tema n. 1.157), são de índole processual e não impactam diretamente a situação concreta dos servidores abrangidos na hipótese de fundo (regime jurídico de servidores admitidos antes da Constituição Federal sem concurso público).
No entanto, mesmo na hipótese de situações “sub judice” (com processos pendentes), é possível a aplicação da técnica de “distinção de casos” (“distinguishing”) para afastar eventual intenção de o Poder Público, por intermédio de recurso dirigido ao STF, obter a modificação de entendimentos que já garantam, por decisão de tribunal local ou regional, o enquadramento em Plano de Cargos, Carreiras e Remuneração de servidores cujo ingresso seja anterior à Constituição Federal.